Diante da desinformação que domina as redes sociais, percebe-se que muitas pessoas confundem desigrejados e as pessoas sem religião como se ambos os públicos fossem o mesmo, mas não são. Há diferenças e semelhanças entre os dois grupos.
Há uma diferença principal que não pode ser esquecida. Os desigrejados aceitam a religião. Por exemplo, os evangélicos desigrejados se denominam cristãos. Esse grupo aceita o cristianismo e, por meio dele, busca a Deus. Os desigrejados não querem pertencer à instituição igreja, mas desenvolvem a religiosidade baseada em uma religião. A espiritualidade não religiosa, ou seja, sem religião, não aceita a religião. Afirma que busca a Deus, mas não uma religião que traz consigo dogmas e rituais. Os sem religião quebraram o vínculo religioso.
Há muitas semelhanças entre ambos os grupos como a desinstitucionalização, a individualização, a autonomia na prática da fé, a não aceitação dos dogmas e a recusa a participar de uma igreja.
A desinstitucionalização tem se tornado um traço marcante nas pessoas que criticam os líderes, o ritual e os dogmas da igreja cristã. Pela recusa em ser membros das instituições, muitas pessoas, tanto desigrejado quanto os sem religião, rompem os laços com a comunidade de fé. Há o afastamento pessoal das práticas rituais que ligam o fiel à igreja. Existe a desafeição religiosa. As pessoas estão dispensando a mediação institucional, não se sujeitando mais aos preceitos religiosos, mas seguem a própria tutela e experiência espiritual. É a prática da espiritualidade sem religião, mas não de uma espiritualidade sem crenças ou sem a crença em Deus.
A individualização mostrou que as pessoas querem uma vivência autônoma de fé. A prática da religiosidade acontece de forma individual, de acordo com as ideias da própria pessoa. A instituição igreja perdeu a sacralidade para quem adota a ideia da individualização da religiosidade. Muitos estudiosos afirmam que esse modo atual de viver é a fé self service, onde cada pessoa se serve das ideias e rituais que lhe agrada. O individualismo se liga à autonomia. Esses dois aspectos estão conectados.
Já quanto ao aspecto do fim das regras estabelecidas por dogmas, isso se dá tanto sobre o conteúdo do que crer quanto no interpretar as Sagradas Escrituras. As pessoas com vínculo institucional mantém a noção e a experiência de Deus em harmonia com a cânone da tradição, reconhece a doutrina, pratica a vivência comunitária e os rituais. Já as pessoas sem religião entendem que Deus é modelado pelas suas próprias ideias. Por parte dos que praticam espiritualidade sem religião acabou a submissão e a obediência. Os sem religião entendem que Deus é acessível a todos e está presente em todos os lugares. Dizem que Deus não é propriedade de uma instituição e não é necessário pertencer a uma religião para acreditar nEle. É a própria pessoa que cria a ideia de Deus e isso não é regulado mais pela instituição. As pessoas que não têm religião não participam de uma organização religiosa, resignificam as crenças que ainda mantém e rejeitam as crenças que não fazem sentido para si mesmas. Ou seja, interpretam as regras do jeito que querem e acreditam nas doutrinas que lhes convém. É o Evangelho, por exemplo, sendo vivido sob a medida de cada um.
Sobre o fim das regras estabelecidas por dogmas e a não participação nas comunidades de fé, a ideia é simples: as pessoas que praticam a espiritualidade autônoma e os desigrejados não querem frequentar igrejas e também não aceitam a tutela de líderes religiosos.
Entende-se por desigrejado a pessoa que não aceita ser membro ou frequentar uma igreja. É a pessoa cristã, protestante ou evangélica, que é desinstitucionalizada. Desigrejado não é desviado. Já a pessoa sem religião é a que pratica a religiosidade sem pertencer a uma religião específica. Espiritualidade sem religião é qualquer espiritualidade regulada e experienciada fora dos marcos institucionais e doutrinais. Não há pesquisa sobre o número de desigrejados no Brasil. Os sem religião representam 8,04% da população brasileira, o que corresponde a 15.335.510 indivíduos, de acordo com o censo do ano de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É o terceiro grupo com maior número de adeptos, depois dos católicos romanos e evangélicos.
A crise do pertencimento religioso
A secularização gerou a ideia da autonomia das pessoas, a crise do pertencimento religioso e o enfraquecimento das instituições religiosas. Por causa disso a sociedade passa por adversidade quanto a pertencer a uma religião. Não se fala no fim da religião, mas em uma profunda crise pela qual passam as instituições religiosas. O fim do pertencimento religioso gera crise nas igrejas. Os sistemas de crenças e de valores entram em descrédito quanto mais forte fica o conhecimento e a ciência. Questiona-se agora os valores, dogmas, crenças, discursos e as instituições que nortearam a vida das pessoas por muito tempo.
Há estudiosos que falam em enfraquecimento das instituições religiosas e outros que discordam dessa afirmação dizendo que o que existe hoje não é o enfraquecimento, mas uma reconfiguração da religião, a recomposição do campo religioso. Por exemplo, para Danièle Hervieu-Léger, a modernidade não trouxe o declínio da religião. Para Marià Corbí, as novas formas religiosas atuais não mostram sinais de revigoramento, mas de enfraquecimento da religião. As mudanças profundas na atualidade que ocorrem nas condições culturais, sociais e de trabalho, para Corbí, levará ao enfraquecimento e ao fim da religião. O conceito de religião, de acordo com José Álvaro Campos Vieria, “refere-se a todo e qualquer sistema de crenças mantido por textos sagrados, símbolos, mitos e rituais, e que funciona como programa de vida quer para os indivíduos, quer para a coletividade”. A religião é vista como criação dos seres humanos. A espiritualidade não é entendida como criação, mas é uma dimensão da espécie humana.
Características da religiosidade atual
Além da secularização, outras características percebidas na contemporaneidade são o trânsito religioso, o traço tribal, o fim da crença na verdade absoluta, o individualismo, a espiritualidade emotiva (baseada no sentimento e não no conhecimento), a subjetividade (onde se rejeita a reflexão racional e usa-se os sentimentos e desejos como critério de validação das coisas), pluralismo (no que concerne à multiplicidade de pensamentos e práticas. Não se contradiz o pensamento dos outros, ainda que esteja errado ou contrário ao que é interpretado pela maioria), tolerância (existe uma complacência para com os diferentes modos de se pensar; aceitam-se todas as pessoas, todas as ideias, independente da orientação moral, dando a elas voz e poder. A ideia é de que ninguém pode ser questionado. É uma tolerância total. Perdeu espaço a antiga ideia de um cristianismo que propunha mudança de vida quando se aproxima do sagrado), o pragmatismo (pregando o prazer do aqui e agora) e o hedonismo. Zygmunt Bauman diz que o sentimento hedonista do eu primeiro governa o mundo. Hedonismo é um tipo de filosofia que surgiu na Grécia que busca o prazer como estilo de vida, sendo este considerado o bem supremo. Para atingir o hedonismo, as pessoas podem se tornar egoístas, pois enxergam somente suas prioridades para atingir esse fim. Além de egoísta, o hedonista é ainda individualista, pois sempre busca suas prioridades. “A alta dos sentimentos hedonísticos e do eu primeiro são fenômenos que, sem dúvida, se destacam entre as marcas de nosso tempo”, diz Bauman.