Um acréscimo de mais de 30 anos de esperança de vida separa os brasileiros da primeira metade do século 20 dos cidadãos de hoje. A evolução registrada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) vem a reboque de avanços médicos e sanitários no país, mas não reverbera nas políticas públicas do Estado.

Na última reportagem da série Envelhecer no DF, o Correio ouviu histórias de idosos que sofrem com diferentes situações de abandono — da dificuldade do acesso aos serviços públicos, no momento em que mais precisam, até a exclusão familiar, por fatores econômicos e emocionais. Ademais, profissionais analisam o caminho esperado para uma sociedade que, contrariando as projeções demográficas, segue sem discutir abertamente o cenário que se avizinha, o envelhecimento populacional.

Aos 79, Lazara Venâncio da Silva, moradora de Ceilândia, depende, para viver, da voz e dedicação da filha, a farmacêutica Ione Venancio dos Santos, 52. Com problemas crônicos na coluna e dificuldade de locomoção, a idosa luta para conseguir atendimento de fisioterapia.

Segundo Ione, tudo começou com pequenas dores, até que a mãe foi gradualmente perdendo a autonomia, devido a cistos em todas as vértebras. Com isso, Ione começou uma saga em busca de diagnóstico e tratamento para a mãe na rede pública de saúde.

A farmacêutica diz que o primeiro obstáculo para as famílias dos idosos, com problemas de saúde, é o acesso às informações, para saber como se direcionar. Até conseguir tratamento no Centro de Saúde nº 3 — Ceilândia Sul, ela e a mãe peregrinaram por quatro anos, chegando a ter que recorrer à rede privada.

“O problema foi se agravando. De repente, ela não conseguia nem ficar de pé. Só este ano conseguimos atendimento, mas ela ainda precisa de fisioterapia. São algumas sessões, depois as dores voltam, e, quando voltarem, o que faremos?”, questiona Ione.

A responsável pelo CAPS II, Vilmara Cardoso, afirma que o acompanhamento da família é fundamental. “Muitas vezes, o idoso tem resistência ao tratamento e também há os casos em que ele vive sozinho, sem rede de apoio, numa situação muito fragilizada”, explica.

A ausência familiar, atualmente, é enquadrada como fator de piora da qualidade de vida e adoecimento dos mais velhos. É uma síndrome gerontológica chamada insuficiência familiar (veja infográfico). Em que pese o fator econômico colaborar, muitas vezes, para o abandono do idoso, a desconexão afetiva também permeia extratos sociais mais abastados. A gerontóloga e fisioterapeuta Juliana Gai, 44, conhece as duas realidades.

“É difícil julgar, porque há muitas situações. Em muitos casos, quando o idoso tem renda e a família depende desse valor para se manter, assume os cuidados. Agora, se não há ganhos, o risco de abandono é muito grande. Já vi casos de chamarem a assistente social para denunciar uma situação de maus-tratos, mas, quando vimos a situação de perto, a realidade é que ninguém da casa tinha o que comer. Nesses casos, entrava o trabalho de encaminhamento para casas de acolhimento”, relata a profissional.

O atendimento aos que estão em situação de risco ocorre dentro da estratégia de Saúde da Família, e os Centros de Referência de Assistência Social são acionados em casos de vulnerabilidade. É o que informa Angela Sacramento, uma das responsáveis pela Referência Técnica Distrital (RTD) de Saúde do Idoso, da Secretaria de Saúde (SES-DF).

“Eles fazem uma investigação para entender como funciona essa família. Às vezes, ocorre até a mediação de conflito. Se é um idoso mais fragilizado, é possível que seja indicado para a institucionalização, que é feita pela Sedes (Secretaria de Desenvolvimento Social), que gerencia os critérios específicos. Com o envelhecimento da população, há um risco maior para os idosos que não têm rede de cuidados”, admite.

Cidades Insuficiencia familiar
Cidades Insuficiencia familiar(foto: Valdo Virgo)

Velhice errante

Em meados desta década, o Brasil já deve ter alcançado a posição de sexto país com mais idosos do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde. Assim, a segurança alimentar desses cidadãos é uma questão a ser enfrentada. Em Brasília, até o fim de junho, 15.873 pessoas com mais de 60 anos procuraram algum tipo de benefício governamental, como os auxílios calamidade, vulnerabilidade. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) atende 25.462 idosos, entretanto, o número de inscritos no cadastro único é maior, 51.248.

Os dados são da Secretaria de Desenvolvimento (Sedes), que contabiliza também 250 cidadãos, acima dos 59 anos, acolhidos em entidades vinculadas ao Estado. Entretanto, não foi informado quantas pessoas aguardam por uma vaga. O DF, assim como outras unidades da federação, não possui abrigos públicos.

Formalmente chamadas de instituições de longa permanência, as vagas para o GDF vêm por meio de convênios. O Correio entrou em contato com algumas instituições parceiras que admitiram haver uma lista de espera, mas que todo encaminhamento é feito pela Sedes.

Como as vagas são insuficientes, Dionísio Loro, 68 anos, segue vagando pelas ruas da cidade. Peruano, ele veio para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Sem familiares ou amigos próximos, ele carrega seus pertences em uma sacola plástica e segue passando por casas temporárias de acolhimento.

A condição de Dionísio é agravada pela saúde debilitada, o que dificulta sua caminhada diária. “Tenho problemas respiratórios, que me prejudicam muito para andar grandes distâncias. Às vezes, consigo ser atendido, mas os remédios são muito caros e não consigo comprar. De vez em quando, consigo doação”, conta. Além da falta de atendimento, ele reclama da saudade de seus entes queridos. “Estou morando no Brasil faz cinco anos. Quando lembro da minha família, sinto muita saudade”, emociona-se.

Em busca de espaço

Em 2020, auge da crise sanitária desencadeada pela covid-19, a Companhia de Planejamento do Distrito Federal estimou que 96.519 idosos viviam sozinhos e 14.495 em habitações consideradas inadequadas. Os dados trouxeram preocupação. Para além do contexto pandêmico, a perda de autonomia dessas pessoas pode representar a deterioração progressiva da vida para quem não conta com rede de apoio.

Morando só em Taguatinga e sem contato próximo com os filhos, Tertuliana Gomes de Araújo, 68 anos, sentiu o peso de depender exclusivamente de si. Sem querer se entregar à solidão, ela buscou a Associação dos Idosos de Taguatinga, em 2018. Lá, a aposentada encontrou na companhia das pessoas da instituição uma nova rotina e lazer. “Não gosto de ficar sozinha. Dentro de casa o tempo todo, vem só pensamento ruim. Aqui tem lanche, pessoas para eu conversar e atividades que eu gosto de fazer”, afirma.

A professora aposentada de geografia da rede pública Myriam da Silva Severino, 56, é voluntária na associação. De acordo com ela, o estabelecimento recebe casos de idosos que passaram por maus-tratos e situações de vulnerabilidade. A convivência no abrigo faz com que os efeitos de seus traumas sejam amenizados.

“Os idosos que chegam começam a criar vínculos e relações de confiança. Eles têm assistência jurídica e humana, o que ajuda para que se sintam confortáveis com sua vida e superar traumas que tiveram”, explica. Com 36 anos de existência, a instituição não governamental e sem fins lucrativos atende, hoje, cerca de 100 idosos da região. “É preciso valorizar o trabalho desenvolvido com os idosos, eles precisam de muita assistência”, enfatiza Myriam.

*Estagiário sob a supervisão de Málcia Afonso